“Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos, era a idade da sabedoria, era a idade da insensatez, era a época da crença, era a época da descrença, era a estação da Luz, era a estação das Trevas, era a primavera da esperança, era o inverno do desespero.”
Charles Dickens — Um conto de duas cidades
Em evento recente no Brasil, Howard Marks, que merecia nome de batismo melhor do que “guru de Warren Buffett”, alertou para a necessidade de separarmos o excepcionalismo norte-americano em dois grandes blocos. Se olharmos do ponto de vista macroeconômico, sistêmico e institucional, sob a ótica de Main Street, a expressão estaria se esfarelando. Já se a visão estiver circunscrita ao ambiente microeconômico, na pujança da indústria de inteligência artificial e de seu entorno, então poucas vezes encontraremos na História excepcionalidade tão grande.
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A preocupação sobre uma deterioração institucional dos EUA vem ganhando adeptos renovados a cada dia. Nesse final de semana, Thomas Friedman lembrou de sucessivas decisões de Donald Trump vistas tipicamente apenas em “Repúblicas das Bananas”. John Authers, colunista da Bloomberg, já havia identificado um processo de “Bananification” dos EUA na semana passada. Larry Summers comparou a recente demissão da responsável por dados do mercado de trabalho ao observado na Argentina de Kirchner.
As características estruturantes dos EUA enfrentam abalos sísmicos. Na edificação da “Democracia na América”, Tocqueville se impressionou com o Império da Lei, o respeito às regras e à impessoalidade. Era o inverso da afabilidade e cordialidade descritas em “Raízes do Brasil”, por exemplo. A falta de institucionalidade e o peso dado a laços pessoais por Trump parecem aproximá-lo de um caudilho latino-americano, o que talvez seja, em pouco tempo, uma ofensa aos latinos…
A região passa por uma onda contrária à esquerda populista clássica. Evidência mais emblemática na Argentina de Milei, a quem Niall Ferguson chamou de “Thatcher com esteróides”. Na Bolívia, de forma surpreendente, a eleição de segundo turno nem sequer terá um candidato da esquerda. Maduro está cada vez mais isolado na Venezuela.
Se a onda vai se transformar em tsunami e afetar o Brasil, é cedo para dizer. Mas é anedótico vermos Stanley Druckenmiller, que pegou na veia o rali de Argentina, agora montar uma posição ações brasileiras. O smart money se movimenta, talvez antecipando uma chance de rali eleitoral capaz de conferir interessante assimetria aos preços.
IA e o excepcionalismo norte-americano
Os números cheios, seja da economia, seja dos índices de ações, escondem a desconfiança crescente com o dólar e a hegemonia norte-americana por conta do estupendo vigor dos setores ligados à inteligência artificial.
Em sua apresentação mensal, a empresa de investimentos WHG trouxe dados interessantes a esse respeito, mostrando várias evidências dessa bifurcação.
Desde 2023, o índice da Goldman Sachs de semicondutores ligados à inteligência artificial sobe 312%; a parte analógica desse segmento se valoriza apenas 3% no mesmo intervalo.
Neste ano, um basket de semicondutores avança 19,4%, contra 9,3% de uma cesta de companhias de software.
Se olharmos por indústrias, aeroespacial sobe 52%, energia para IA avança 37%, bens industriais propriamente ditos se valorizam 5%, enquanto indústrias de ciclo curto perdem 5% e transportes recuam 18% na média do acumulado de 2025.
Os lucros para as Mag7 seguem sendo revisados para cima, enquanto, para a média do S&P 500 excetuadas essas empresas, há uma atualização para baixo de 8% nos lucros projetados desde junho de 2024.
A dicotomia cruza fronteiras: na Europa, uma cesta de energia atrelada à inteligência artificial se aprecia 21,5%, contra uma queda de 12,6% de uma cesta ligada ao consumo de luxo.
O megatrend global está na IA e em seu entorno. Tudo dentro dela; quase nada fora dela. Como lembra a própria WHG, o Brasil teria tudo para se beneficiar dessa grande tendência. Num mundo carente de energia, temos sobra de capacidade energética, com uma matriz 90% limpa, e amplo espaço para desenvolvimento de data centers. Só o Canadá seria um rival à altura.
Na corrida do ouro, quem mais ganha são os vendedores de pás e picaretas. Em vez de nos aproveitarmos disso, preferimos a briga com as big techs. Avançamos rumo à maior regulação e vemos nossa primeira dama dizendo aquela palavra começando com “F” para se referir a Elon Musk. Não parece ser a melhor diplomacia também nesse escopo.
Não há como ignorar uma das maiores revoluções tecnológicas e de produtividade da história da humanidade. Ainda faz sentido ao investidor ter exposição às big techs norte-americanas. Ao mesmo tempo, acreditar que o dólar continuará como a grande e inquestionável reserva de valor global (ao menos nas proporções atuais) diante de tantos ferimentos às boas e históricas instituições dos EUA parece negligenciar como impérios se desenvolvem e se destroem anos à frente. Os R$ 5,30 são logo ali…
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